Este texto aborda um tema complexo e que tem potencial para transformar tanto o universo trabalhista quanto o de negócios. Por isso, eu chamei minha amiga advogada e especialista em Direito do Trabalho Cíntia Zózimo* para escrevermos, em conjunto, sem juridiquês sobre uma modalidade de trabalho formalizada pela reforma trabalhista de 2017, o trabalho intermitente, que está sendo questionado no Supremo Tribunal Federal. Confira:
Nosso objetivo aqui é deixar algo claro sobre o trabalho intermitente: o julgamento no STF precisa levar em conta que simplesmente torná-lo inconstitucional seria um retrocesso.
Trabalho intermitente, CLT e STF
Regulamentada pela Lei 13.467/2017, essa modalidade de trabalho é uma maneira de formalizar o trabalhador autônomo e parte das profissões inseridas no universo da gig economy, que apresentei neste link. Antes de mais nada, vamos explicar um resumo de como funciona o trabalho intermitente:
- Como o próprio nome diz, o contrato funciona com intermitência, ou seja, com interrupções, ocorrendo alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade. Em outras palavras, há um contrato para o qual a pessoa só é chamada quando necessário e por um período específico.
- O trabalhador pode ter contratos com mais de uma empresa e não tem a obrigação de aceitar o trabalho quando chamado, o que gera uma certa liberdade e autonomia. A regra é: a empresa precisa acionar o trabalhador com, no mínimo, três dias de antecedência antes do serviço. O trabalhador deve responder em 24 horas se aceita. No caso de ausência de resposta, é considerada a recusa automática;
- O salário, obrigatoriamente, deve seguir o valor pago aos demais empregados na mesma função, jamais sendo inferior ao salário mínimo proporcional às horas trabalhadas;
- Principalmente, é preciso lembrar que o trabalho intermitente, desde 2017, foi incluído na CLT – Consolidação das Leis do Trabalho. Então, o empregador formaliza a data de início e fim da demanda, mas é obrigado a realizar pagamento de férias, 13º salário, FGTS e INSS proporcionais ao período da intermitência. Há também o descanso remunerado.
- Na qualidade de empregado com carteira assinada, a demanda trabalhada conta como tempo de serviço para fins de aposentadoria.
- Todas as categorias e atividades econômicas podem praticar este tipo de contrato, exceto os aeronautas, que são regidos por legislação própria.
Oportunidade para períodos de sazonalidade
Geralmente, empresas com sazonalidade na produção têm uma boa oportunidade nesse modelo, ao invés de fazer uso de temporários. É o caso do comércio e da indústria em datas específicas. Por exemplo, na Páscoa indústrias de chocolate aumentam a produção e o comércio aumenta as vendas.
Ao passo que ambas as empresas desse exemplo demandam maior mão de obra, elas podem contar com profissionais, às vezes, já treinados pela própria companhia. Ou seja, são pessoas que podem estar acostumadas ao serviço, por já terem sido acionadas anteriormente.
Trabalho intermitente: julgamento no STF, alegações e placar
Até o momento, em janeiro de 2021, 3 dos 11 ministros do STF votaram. Relator dos processos, Edson Fachin votou pela inconstitucionalidade. Já Kassio Nunes Marques e Alexandre de Moraes consideraram constitucional. Rosa Weber pediu vista (maior tempo de análise). Dessa forma, interrompeu o julgamento, que deve ser retomado logo, logo.
Vamos explicar as contestações. Há três Ações Diretas de Inconstitucionalidade sobre o trabalho intermitente: o julgamento no STF acolhe duas de federações de trabalhadores (uma de telecomunicações e outra de empregados do ramo de combustíveis) e uma de confederação (trabalhadores de indústrias).
Elas alegam que, contrariando a Constituição, o trabalho intermitente afetaria a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e os diretos dos trabalhadores urbanos e rurais. Essas ações no STF argumentam principalmente o não pagamento de um salário integral, apenas o combinado às horas trabalhadas.
Por exemplo, se o trabalhador trabalhar duas semanas, pela lei, o empregador deve pagar apenas por aquele período trabalhado – e não pelo mês cheio. Os requerentes utilizam o mesmo argumento em relação a férias e outros direitos sociais, que são pagos de forma proporcional. Por outro lado, o contrato intermitente inclui, sim, o descanso remunerado.
O lado do empregador
Ao passo que há uma oportunidade de trabalho para duas semanas, por exemplo, teria o empregador de pagar todo o mês? Faz sentido? Pensemos em uma pequena empresa, com baixo faturamento, que precisa de apoio por duas semanas para produzir ovos de Páscoa, por exemplo. Ela teria condições de pagar todo um salário mínimo a cinco trabalhadores em momento de alta demanda, ficando ociosos parte do tempo? Vale a reflexão.
Do mesmo modo, sabemos que indústrias de bebidas têm alta produção no verão. Imagine que, ciente da sazonalidade do negócio, uma grande empresa de bebidas precisa de 200 trabalhadores na linha de produção para dar conta de uma demanda por cinco semanas – no caso, um mês e mais sete dias.
Reflita: essa companhia teria como bancar um salário integral a todos os trabalhadores por dois meses, ao invés de salário proporcional aos dias trabalhados? Posteriormente, uma obrigação dessa se refletiria no preço do refrigerante, gerando a malfadada inflação do setor de bebidas e alimentos.
E o trabalhador, como fica?
Agora vamos pensar pelo exemplo dos trabalhadores rurais. A época alta de colheita da safra de soja no Brasil é entre janeiro e março. Nesse sentido, é necessária a contratação de grande volume de mão de obra por parte de produtores rurais (pequenos, médios e grandes) e empresas do setor, incluindo cooperativas.
Nesse sentido, o trabalho intermitente é uma oportunidade para um trabalhador do campo ter emprego, com direitos legais, por três meses, no mínimo. Inclusive, se tiver mais de um contrato intermitente ativo, esse mesmo trabalhador poderá escolher o local que fizer a melhor oferta: cooperativa, empresa rural ou grande produtor rural.
Ao mesmo tempo, podemos dar o exemplo de bons vendedores na época de Páscoa ou Natal. Qual empresa iria querer perder em seu comércio um trabalhador que convence clientes e que mostra a capacidade de aumentar o ticket médio? Conforme a oportunidade, o trabalhador intermitente seria o primeiro a ser convidado para compor o quadro definitivo.
Além disso, o trabalhador que exerce de forma autônoma uma atividade, também tem benefícios com um contrato de trabalho intermitente, uma vez que é uma clara hipótese de formalização da mão de obra. Afinal, há garantias e direitos trabalhistas como 13º salário, férias, FGTS, recolhimento de INSS, benefícios previdenciários (auxílio doença, auxílio acidente e salário maternidade) e seguro desemprego, por exemplo, que não fazem parte da realidade do autônomo.
O futuro do trabalho intermitente: julgamento no STF
Vemos que muitas empresas não têm coragem de arriscar com essas contratações. Elas temem processos, afinal, ainda há riscos. Portanto, finalmente, temos uma oportunidade de ouro para o trabalho intermitente: o julgamento no STF pode dar essa segurança jurídica. Isso não quer dizer, contudo, que a lei não precisa ser aprimorada.
Atualmente, a adesão ao trabalho intermitente no Brasil é baixa. Um ano após a reforma trabalhista ser implementada, em 2017, apenas 0,5% das contratações em carteira assinada foram dessa modalidade, segundo o IBGE. Em 2019, 1%. Em 2020, 230 mil contratos desse tipo entre 39 milhões de celetistas.
Apesar desses números, o Brasil inovou ao incluir o trabalho intermitente na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Poucos países do mundo têm legislação própria para isso. Em seu voto sobre o caso, o relator Fachin destacou alguns modelos europeus. Na Espanha, o contrato precisa ser homologado por negociação coletiva. Em Portugal, há uma indenização por período de inatividade. No Reino Unido, há um modelo similar ao adotado pelo Brasil.
Isso mostra que o Brasil tem a chance de inovar na América do Sul, já que não há grandes regulações do gênero no Continente. E qual o caminho para isso? Diálogo com as mesmas entidades de classe que questionam o trabalho intermitente no julgamento do STF.
Essas organizações são legítimas representantes de trabalhadores e podem fazer um trabalho conjunto de inovação aberta com as empresas, por exemplo, para que os sindicatos e as empresas de um setor específico disponham de um banco de dados de contratos intermitentes. O próprio sindicato pode ajudar na comunicação com trabalhadores sobre períodos de sazonalidade e apoiar contratações.
Além disso, as entidades sindicais têm um papel importantíssimo na negociação coletiva, visando estabelecer regras e condições não previstas na legislação. Permitindo assim, segurança jurídica maior.
Trabalho intermitente, inovação e gig economy
Ainda que as profissões mais comuns no trabalho intermitente, no Brasil, sejam manuais, como auxiliar de produção, por exemplo, existem oportunidades para profissionais com especialização. Nós da Haze Shift podemos afirmar com a certeza de quem já apoiou o desenvolvimento de projetos de inovação aberta – em diversas organizações – que profissionais que se destacam em períodos temporários têm mais chances nessas empresas no futuro.
Então, vamos voltar a pensar no cenário da gig economy, conforme explicamos neste texto. A princípio, fazem parte desse nicho pessoas em busca de flexibilidade e de valorização de seus serviços. Em poucas palavras, são trabalhadores autônomos que, com o advento da tecnologia, prestam serviços a várias empresas ao mesmo tempo. Muitos deles, como os designers, fazem trabalhos especializados. Esporadicamente, as empresas precisam desses profissionais para projetos específicos.
Veja a possibilidade trazida, neste caso, por um contrato de trabalho intermitente: há proximidade para os dois lados, não é mesmo? Afinal, não haverá aumento súbito no preço de um serviço (do designer) e haverá a garantia de um pagamento mínimo para o profissional, sem uma oferta de baixa remuneração em tempos de crise. E o contrato de trabalho intermitente traz garantias de valores, algo geralmente desrespeitado nos chamados “bicos”.
Qual é o desafio, nesse caso?
A empresa precisa fazer uma conta e analisar se vale mais a pena fazer esse contrato intermitente (com incidência de todos os encargos da folha de pagamento) ou pagar um profissional no modelo freelancer, como pessoa jurídica (ou autônomo), ficando sujeita a uma alta súbita de preços dos profissionais especializados.
Se sua empresa tem essa sazonalidade, nós da Haze Shift podemos ajudar no planejamento e no design estratégico do projeto para você desenhar todo o processo, da contratação às vendas. Pense também em como a gig economy pode ajudar e venha falar conosco. Estamos à disposição para conversar e aproveitar este momento em que, finalmente, o trabalho intermitente tem grandes chances de ganhar segurança jurídica.
* Cíntia Zózimo é Advogada Trabalhista, com sólida experiência em Relações Trabalhistas e Sindicais, formada pela Fundação Dom Cabral, MBA em Gestão de Recursos Humanos pela UFF, com mais de 10 anos de experiência em indústria da construção civil, petróleo e gás, bebidas e telecomunicações. Neste artigo, a autora atuou em parceria com Luís Fernando Frederico na produção e na curadoria técnica deste conteúdo. Clique para acessar o LinkedIn da autora