Quando a ciência produzida pela universidade olha para as empresas, e as empresas olham de volta, pode ter certeza: deu mach. Existem diversas amostras de que esse casamento tem tudo para dar certo. E um tema recente que mostra isso se chama transhumanismo.
O doutor Frank Crespilho, talvez o maior dos padrinhos do tema no Brasil, está aí para provar isso. Professor de química da USP de São Carlos, Crespilho garante que a aplicação prática de temas assim, diretamente conectados à saúde 4.0, tem muito a acrescentar na qualidade de vida da população como um todo.
Se você está se perguntando o que é transhumanismo, calma que logo vamos dar a resposta (ou melhor, o dr. Frank vai dar). Mas em primeiro lugar vamos apresentar quem é ele, para você entender a correlação da química com o que é transhumanismo.
Currículo
Responsável por quatro laboratórios em São Carlos, o cientista foi um dos convidados do painel da Haze Shift que traz integrantes do Inovadores & Inquietos – comunidade de inovação que a própria Haze Shift fomenta e que conta com especialistas para difundirem temas inovadores do momento, e da qual o cientista faz parte -, no Viasoft Connect 2022, o maior evento de inovação em gestão empresarial da América Latina.
Frank Crespilho foi professor da Universidade Federal do ABC (SP), onde ajudou a criar o curso de Química. Depois mudou para São Carlos, para assumir a cadeira de professor físico-químico, onde coordena os laboratórios na área de eletrobioquímica e trabalha com bioeletrônica molecular. A eletroterapia, que utiliza correntes elétricas para fins terapêuticos, é um bom exemplo da aplicabilidade desses estudos.
Em outras palavras, a bioeletrônica molecular é totalmente aplicável na área de saúde, como microchips capazes de detectar substâncias no organismo e que podem, em certos diagnósticos, melhorar a saúde do indivíduo. Um exemplo: há 10 anos, ele e sua equipe criaram um biochip implantável para medir glicose na corrente sanguínea instantaneamente, o primeiro estudo do mundo no gênero. Algo altamente inovador e que potencializa e dá mais autonomia à saúde humana.
Isso chamou a atenção e Frank foi convidado para fazer pós-doutorado no Instituto de Tecnologia da Califórnia, para estudar como o DNA se comportava perante essa parte de interação da corrente elétrica e desenvolvimento de testes de diagnósticos. Após, fez novo doutorado, agora na Universidade de Harvard, instituição de ensino com quem trabalha até hoje também em parceria com o Instituto de Massachussets, tanto para a área de energia quanto saúde.
Mas o que tem a ver toda essa questão com o transhumanismo? Vamos às respostas.
Equipe Haze Shift – Doutor, que é e como surgiu esse tal transhumanismo?
Frank Crespilho – O transhumanismo surgiu na década de 60 quando filósofos começaram a pensar a tecnologia e a ciência como um aliado para intensificar algumas propriedades que o ser humano tem, ou até mesmo adicionar propriedades ao ser humano que não existiam.
Por exemplo, quem usa óculos corrige a visão. Mas dos óculos você consegue chegar ao microscópio, dando uma habilidade que não se tinha: enxergar algo muito pequeno. Ou seja, com a tecnologia, você amplia o sentido.
Na época, o transhumanismo se propôs com esse movimento filosófico, destacando que poderíamos até viver mais e com mais qualidade de vida por meio da tecnologia, o que é verdade com fármacos e procedimentos cirúrgicos. Mas pensaram também em uma maneira de você incorporar isso de forma híbrida: orgânica e inorgânica, como braço mecânico, chip e coração artificial.
E tem pesquisadores no mundo, em alguns grupos, que pesquisam a longevidade. Em 2020, saiu um artigo na revista Nature em que alguns cientistas conseguiram rejuvenescer algumas células – se não me engano, de camundongos –, trazendo uma perspectiva de usar esse processo genético para rejuvenescimento.
Então, tem correntes que defendem essas pesquisas para você viver mais. Tanto é que alguns grupos estão estimando vidas de 150, 200 anos em um curto intervalo de tempo, devido aaos benefícios da inovação e incorporar ciência e tecnologia às máquinas, de maneiras híbridas [e totalmente seguras].
Nós pensamos em ciborgs: parece ficção mas não são. Hoje já conseguimos editar o DNA e fazer várias ações de caráter técnico e científico que a gente já conhece da eletrônica molecular, por exemplo, que aumenta essa performance humana. Veja o marcapasso, que corrige problema cardíaco por impulso elétrico. Então, você estender a qualidade de vida, e tudo mais, entra nessa área da ciência que muitas vezes o cientista não pensa como um tema mais geral. Contudo, isso cai na filosofia do transhumanismo, que significa transcender realmente, incluindo mais habilidades ao ser humano. Algo que ele não tinha de maneira natural, incluindo, vamos dizer assim, de maneira artificial ou sintética utilizando toda essa parte de bioeletrônica.
EHS – Por que é importante esse debate neste momento da humanidade?
Na verdade, isso vem sendo discutido faz tempo no exterior. Já participei de grupos de discussão disso na Califórnia, em Boston, há mais de 10, 15 anos. No Brasil, agora que se está olhando para isso por causa da inovação tecnológica ascendente.
Então, esse tema está surgindo agora com mais afinco e não se tem muitos pesquisadores no Brasil trabalhando com algo que remeta ao transhumanismo. Meu grupo é um dos poucos que pensa nessa parte da bioeletrônica, sendo um grupo que trabalha diretamente temas relacionados ao que é transhumanismo.
Talvez por isso comecei a ser requisitado em eventos porque as consequências das nossas pesquisas podem trazer a reflexão para isso. No Brasil, contudo, o problema é o timing, que talvez tenha aflorado agora principalmente por causa dos eventos de inovação e da nova onda de startups e de techs surgindo. Assim, os temas começam a surgir naturalmente.
A humanidade tem que discutir esses temas ácidos que envolvem caráter ético e filosófico envolvendo a ciência. É importante essa discussão para mostrar o que está acontecendo e como sociedade vai se comportar.
Então, trazer esses temas em um Viasoft Connect e outros eventos de tecnologia significa começar a entender que nós temos possibilidade de discutir temas grandes, e relevantes no exterior, em função do que a gente faz no Brasil. Isso é muito legal.
EHS – E o transhumanismo se conecta ao que chamamos de Saúde 4.0?
Sim. Tudo que envolve tecnologia para aprimoramento da qualidade humana a gente pode colocar nesse contexto. A saúde 4.0 pode, principalmente, estar interconectada. E nada impede que parâmetros de saúde e até tratamentos do ponto de vista virtual sejam interconectados através de biochips, de monitoramento a distância. E isso só para saúde humana.
E o transhumanismo é isso: a pessoa está em casa com um chip que detecta vários parâmetros e, se um dá problema, automaticamente isso pode ser acessado por um médico. Então ele melhora automaticamente sua qualidade de vida, que é uma das coisas que o transhumanismo discute: a aplicação da tecnologia para a longevidade.
EHS – Como as startups de saúde e de outras áreas podem ajudar a evolução do transhumanismo?
Os temas saem sempre da Academia. Não tem inovação sem pesquisa. E não tem aplicação da pesquisa sem inovação. Então eu digo que são três fases: universidades, startup-empresa, sociedade.
Se a universidade e os grupos de pesquisa fazem algo, se ela olha para empresa, automaticamente ela está olhando para a sociedade. Porque se uma empresa tem interesse comercial, ela olha para aquela demanda.
Vamos imaginar que você quer abrir uma empresa de teste de dengue. Por que pensou nisso? Foi porque percebeu que a população não tinha esse acesso a testes, e faltava isso no mercado. E quando a universidade conversa com a empresa, ela vê o que a sociedade está querendo. Então, como a empresa é focada em pesquisa de mercado, ela olha para a demanda. Dessa forma, se a universidade está olhando para a empresa, repito, ela e os pesquisadores estão olhando para a sociedade.
Essa interconexão existe naturalmente. Mas a inovação tecnológica, que envolve tecnologia e descobrimento, ela envolve pesquisas bem profundas sobre temas importantes.
EHS – Como isso está sendo feito, hoje em dia, por universidades como a USP?
Posso dar um exemplo pessoal. Hoje minha linha de pesquisa, como veio a pandemia, começou a dar mais foco na parte aplicada do que fundamental, principalmente para detecção de Covid. Nós desenvolvemos dois testes no laboratório: um para detectar anticorpos no sangue, e outro antígeno. Esses dois já estão em fase de validação da Anvisa.
Simultaneamente também desenvolvemos um teste rápido de dengue, que a gente chama points of care. Isso significa utilizar aparelhos nos pontos de atendimento. Então, estamos desenvolvendo equipamentos para que, em 15 a 20 minutos, rapidamente você saiba o diagnóstico.
A partir disso geramos spin-offs no laboratório:
Uma joint venture chamada Biolinker Diagnosis, da qual eu sou sócio fundador que a gente realizou junto com a Biolinger, que é uma startup de tecnologia.
E também geramos outras empresas que estão em fase de implementação. A primeira é a Diagnostica Electronic, que vai desenvolver biochips.
Essa spin-off está em fase inicial de rodadas de investimentos, que é para capitalizar e desenvolver máquinas que a gente quer trabalhar, que se chama PCR-on-a-Chip. Inclusive, a gente está com a patente dele.
Esse é um equipamento multiplataforma pensado no SUS, de baixo custo, com toda tecnologia desenvolvida aqui no Brasil. A ideia é que a população tenha acesso a PCR por baixo custo, voltada para implementação em grandes hospitais, clínicas de diagnósticos, consultórios médicos. A Diagnostica Eletronic tem esse propósito e está sendo montada aqui em São Carlos, e já validou o primeiro protocolo para detecção de Covid.
Então, minha parte de inovação é sempre tentar trazer o conhecimento da universidade de uma maneira que você incentive os jovens doutores e pesquisadores a criar estrutura de Tech. A ideia é dar suporte para jovens que saem de doutorado e graduação querendo inovar e que às vezes se sentem desamparados por estar começando. Então eu sempre tento dar suporte técnico com a estrutura que já montei para que eles se desenvolvam e acelerem rapidamente.
EHS – Qual é a importância de a ciência chegar a toda sociedade e às empresas e como eventos como Viasoft Connect podem ajudar nisso?
Vamos dar um exemplo: os patins são utilizados para locomoção e esporte. Mas depois de 100 anos uma rede de supermercado resolveu utilizar para funcionários ficarem menos cansados e mais ágeis. Isso é uma inovação. Mas não é uma inovação tecnológica, porque ele pegou algo e inseriu a aplicabilidade em outro setor. Essa aplicabilidade pode acontecer em vários setores, principalmente na parte digital, pegando tecnologias já existentes.
Mas quando a gente fala em inovação tecnológica, a gente tem que buscar tudo isso. É o que a gente chama de inovação aberta, quando a empresa está com algum problema e precisa resolver, e vai na universidade buscar essa informação, ou os pesquisadores que têm o conhecimento de uma área que, por exemplo, ainda vai ser vislumbrada daqui cinco ou dez anos, ou no médio prazo, eles começam a perceber que essa tecnologia se encontra em uma situação que pode resolver um problema relevante para a sociedade.
Quando isso acontece, o pesquisador ou cientista tem imediatamente que avaliar o estágio que está essa tecnologia. E aí são os aqueles famosos TRLs (Technology Readiness Levels, em português, Níveis de Preparo Tecnológico), que medem o nível de amadurecimento da tecnologia, que vai em uma escala que a NASA criou e que varia de 1 a 9.
Quando você tem um TRL 5, que é um estágio intermediário, aí já é hora de ter uma interlocução do setor privado ou com alguma empresa de desenvolvimento.
E aí a comunicação se torna extremamente importante. Então, todo o networking e essa parte fazer essa interlocução com o setor de investimentos, com as aceleradoras, é a etapa mais crucial para uma tecnologia ganhar mercado. Então, a ciência vem exatamente para isso. Às vezes você não vislumbra que algo seja aplicável em curto intervalo de tempo.
Contudo, com certeza esse descobrimento e inovação pode ser em um timing maior. Pense: em 50 anos depois da [teoria da] relatividade ser descoberta tivemos o GPS, que usa a equação de [Albert] Einsten para correção de rotas. Era algo que ninguém saberia a aplicação prática em relação ao tempo relativo ao espaço e velocidade, tem hoje uma aplicação direta em navegação.
EHS – Qual a importância de comunidades de inovação e consultorias de inovação em promover a ciência?
O pesquisador tem que olhar para o que faz se quer ser inovador, avaliar o amadurecimento da tecnologia dele e encontrar os parceiros corretos. Quando tudo isso acontece ao mesmo tempo, a probabilidade de sucesso é muito grande. E outra coisa é envolver pessoas e talentos que queiram fazer inovação. Então, você tem que cultivar os jovens, os jovens cientistas para, além de fazer ciência fundamental, você olhará para o lado mais aplicado olhando, mais do que para o mercado, olhando para a demanda da sociedade.
EHS – Foi mais ou menos assim que você passou a fazer parte da comunidade de inovação dos Inovadores Inquietos?
Há mais de três anos entraram em contato comigo, e eu não os conhecia, porque ouviram falar de uma pesquisa aqui de São Carlos, sobre biochips implantáveis. Do ponto de vista mais geral, o biochip implantável ele entra nessa parte do transhumanismo, que é uma área que envolve muita discussão da sociedade, que envolve ética e outros pontos. Só que quando entraram comigo, eu estava em Harvard e não deu agenda para se comunicar de forma eficaz.
Quando eu voltei, no fim da pandemia, entraram em contato de novo para fazer uma apresentação ao grupo. Eles gostaram muito, gerou algumas conexões com membros que visitaram meu laboratório, e aí me convidaram para uma atividade de tópicos de interesse global, com relevância atual da sociedade, muitas vezes paradigmas não discutidos em fóruns convencionais.
Embora a gente seja da Academia, tem muita coisa que a gente precisa aprender, num modelo dinâmico, virtual e ciência e outros temas de muita relevância. E então tendo sempre estar presente.
Então, me convidaram para o ViaSoft Connect, e fiquei feliz por esse convite.