Ser criativo!
Pare e pense como você leu essa primeira frase. Você considerou a palavra “ser” um verbo ou um substantivo?
A criatividade e o cérebro humano
Falar sobre criatividade é sempre um tema amplo e, às vezes, controverso. Normalmente assumimos que precisamos de liberdade total para sermos criativos. Usando o mundo artístico como exemplo, pensamos em liberdade artística e inspiração como alguma luz divina e que as ideias simplesmente aparecem do nada e que qualquer limitação pode inibir a criatividade.
Com isso em mente, muitas pessoas falam que estão tão absorvidas em suas rotinas – com agendas cheias e obrigações – que não possuem tempo para serem criativas, ou que suas rotinas matam a criatividade.
Bom, vamos então a clássica pergunta, afinal o que é criatividade? Para mim, entre tantas definições que já encontrei ao longo dos anos, a que melhor resume criatividade é uma frase do neurocientista David Eagleman no documentário “The Creative Brain” (Netflix).
Criatividade é o que o cérebro humano faz.
Criatividade e fisiologia
Para David, criatividade é fisiologia, pois tem sido a resposta do cérebro humano à rotina, sobrevivência e evolução ao longo de gerações. Ou seja, avaliamos e absorvemos o mundo, vislumbramos nossas versões do que esse mundo poderia ser, e criamos soluções. Eis um processo criativo raiz! ?
Mesmo sabendo da informação acima, continuamos desacreditando nosso poder criativo. E aí entram outras respostas clássicas: “Não sou criativo porque sou de exatas” ou “Uso mais o lado esquerdo do cérebro”, entre outras ideias pré-concebidas..
Vou contar uma coisa para vocês. Esqueçam essa história de lado direito e lado esquerdo. Nossos neurônios não trabalham sozinhos! Aqui entra David Eagleman novamente. Segundo o neurocientista, embora certas funções estejam restritas a regiões cerebrais específicas, a criatividade envolve o cérebro inteiro: ela surge da colaboração entre redes neurais distantes.
Mas então, se pelo viés da fisiologia, criatividade é um processo natural do cérebro e funciona através da colaboração entre nossos neurônios, por que ainda nos sentimos intimidados por ela?
Fora da caixa?
Quantas vezes você escutou que para achar uma solução para algum problema ou para crescer no mundo corporativo, você deveria pensar fora da caixa? Arrisco dizer, milhares de vezes.
Agora pare para pensar. O que será que esse famoso clichê do mundo dos negócios quer dizer de verdade? Por que precisamos tanto pensar fora da caixa? Será que as soluções ideais estão mesmo do lado de fora da tal caixa?
Pensar fora da caixa já ultrapassou o nível de clichê corporativo e se tornou algo arriscado e intimidador.
Podemos traduzir soluções fora da caixa como ideias disruptivas. E será que a disrupção é sempre o caminho ideal?
Segundo Clayton M. Christensen, o idealizador do termo tecnologias de rupturas no livro “O Dilema da Inovação”, ideias disruptivas demandam muitos recursos das empresas, levam tempo para ser implementadas, custam caro e a curva de adoção é mais longa.
Não me entendam mal. Inovações disruptivas são necessárias sim.
A questão é que a pressão social por pensar fora da caixa e achar a ideia genial tem feito com que muitos evitem simplificar o processo, ou seja, seria mais fácil e produtivo simplesmente encontrar a solução adequada para o problema existente.
Agora avalie, não seria melhor pensarmos em uma adaptação inteligente daquilo que a empresa já oferece e que possa ser implementado com maior agilidade, usando menos recursos e que possa ser corrigido rapidamente? Esse pensamento é o que podemos chamar de inovação incremental, e ela só acontece quando conhecemos e entendemos profundamente aquilo que está na nossa frente: nossa caixa e todas as restrições existentes.
Conhecer sua caixa não quer dizer limitar a criatividade. Pelo contrário, na maior parte das vezes, só precisamos olhá-la sob diferentes perspectivas para efetivamente encontrar as soluções ideais.
Restrições criativas
Isso mesmo, você não leu errado. Criatividade e restrições andam sim de braços dados.
Voltando à arte como exemplo, muitos movimentos artísticos se utilizam de processos estruturados e regras bem claras para definir suas características. Em outro artigo aqui no blog, citamos sobre o grupo literário francês OULIPO que utiliza regras matemáticas e exercícios restritivos para produção literária. Outro movimento a ser citado é o cubismo. Para produzir suas obras de artes, os cubistas devem seguir determinadas regras para avaliação de todas as perspectivas dos objetos e como essas dimensões serão representadas em uma superfície plana (bidimensional).
Leia também: Criar e inovar nas empresas, do design de Santos Dumont às ferramentas modernas
Agora vamos trazer essa visão para o mundo corporativo. Eu diria que é fácil identificar as restrições existentes. Temos cronogramas e orçamentos em projetos, legislações e normas a serem seguidas, barreiras culturais e linguísticas, times em fuso horários diferentes, especificações de equipamentos, e tantas outras. Mas normalmente enxergamos a existência ou aplicação de restrições como uma influência negativa que acabaria por matar o processo criativo e inibir a inovação.
Outro exemplo é pensarmos na dinâmica de brainstorm. Imagine iniciar a atividade sem a aplicação de nenhum escopo de atuação, sem nenhuma delimitação, somente com a orientação de gerar o máximo de ideias. Vamos entender isso melhor? Assista o vídeo abaixo como exemplo:
O que há de errado com a dinâmica do vídeo?
Gerar ideias sem delimitações de atuação, sem entender o objetivo que se quer alcançar, deixa a atividade sem foco e improdutiva. O excesso de ideias (de total liberdade no processo criativo) atrapalha a fase de ideação, resultando em ideias inadequadas e com pouca efetividade.
Por isso a metodologia do Design Thinking é uma excelente opção para a busca de soluções. Nessa metodologia, as fases de ideação e definição possuem orientações claras e trazem aplicação de atividades (restritivas) de atuação para aumentar o foco. Em outras palavras, o design thinking força os participantes a enxergarem o problema sob novas perspectivas e, com isso, aumenta a capacidade criativa do grupo.
Leia também: Como utilizar design estratégico e design thinking nas estratégias de sua empresa
O Design Thinking é só uma metodologia a ser usada entre tantas. O ponto principal que deve ser levado em consideração é que restrições são ferramentas para melhoria no planejamento e na governança da inovação.
Segundo pesquisas realizadas sobre o tema, restrições criam tensão no processo criativo, mas esta tensão gera um paradoxo. Equipes não gostam de se sentir restringidas, mas ao mesmo tempo entendem a necessidade de limites porque ajudam a estruturar o processo criativo da equipe.
Nesse sentido,com o tempo, as equipes percebem que existe liberdade nas restrições. Essa liberdade surge quando nos tornamos conscientes das restrições ao nosso redor. Isso faz com que saibamos como atuar quando elas surgirem e, consequentemente, nos auxilia a criar o ambiente propício para que possam ser percebidas como oportunidades.
Criatividade: o cérebro, a caixa e as restrições
Agora que já sabemos um pouco mais sobre o processo criativo e sobre seu uso no ambiente de restrições, ouso dizer que a criatividade émuito mais do que uma habilidade. Pense no que o neurocientista David Eagleman comenta sobre criatividade ser algo fisiológico, ou seja, aquilo que o cérebro humano faz. Então, podemos destacar algumas dicas, confira:
- Se a criatividade é um processo cerebral que ocorre através de colaborações neurais, estimule suas conexões neurais através de novos conhecimentos.
- Se o cérebro observa o mundo ao seu redor e busca soluções para sobreviver e evoluir, enxergue o mundo sob novas perspectivas.
- Se precisamos conhecer nossas caixas profundamente, entenda todas as interfaces e restrições existentes no seu negócio.
- Se restrições são ferramentas para potencializar o processo criativo, transforme as restrições em oportunidades.
E como fazer tudo isso?
Implante e pratique a Cultura de Inovação em seu ambiente e desenvolva uma mentalidade de Inovação Aberta, ou seja, abra-se para novas conexões, culturas, perspectivas e colaborações. E isso vai muito além do seu ambiente de trabalho. Aumente sua rede de interesses, leia livros técnicos, leia literatura, veja filmes diferentes (aqui em nosso blog trazemos sete dicas de filmes sobre inovação), assista desenhos, converse com pessoas de áreas diferentes, pratique hobbies e descanse.
Olhe sua casa e sua cidade sob outras perspectivas, converse com clientes, usuários, interfaces e escute ativamente os insights desses grupos sobre seu trabalho, produto, empresa. Crie e teste restrições como forma de estimular e provocar os envolvidos a enxergar os problemas sob novas perspectivas e enxergar novas soluções.
Agora volte, releia a frase inicial do texto e pense: você quer ser criativo ou um ser criativo?
Bem-vindos à era do Homo Sapiens Curiosus!